As Crianças e o Isolamento Social
2.jun.2020 às 23h15
A
praia no tapete, o cavalo na vassoura, o mundo inteiro na sala de casa
Não
é fácil estar confinado com uma criança
Não
é fácil estar confinado com uma criança. Faz dois meses que minha filha pede,
todo dia, pra ir à praia.
Na
primeira vez, tentei explicar que não dava. “Filha, tá rolando uma pandemia,
como é que eu vou explicar, um vírus que…” — daí me lembro que ela tem dois
anos de idade.
Tento
resumir: “Não dá, é impossível”, e ela então começa a chorar, e lembro que é
mais fácil explicar uma pandemia pra uma criança de dois anos do que dizer que
“não dá, é impossível”.
No
desespero surge uma ideia. “Chegamos. Olha o mar ali.” E aponto o tapete azul.
E ela vê o mar se erguer, e abre um sorriso. Basta.
Desde
então, quase todos os dias ela me diz: "Vamo pá paia?", e vai buscar
o maiô, seu chapéu UV e sua cadeirinha de praia diminuta.
Espalhamos
almofadas pelo chão, nossa areia improvisada, e então ela abre a cadeirinha em
frente ao tapete azul, que faz as vezes do mar.
Puxo
uma cadeira e chamamos o moço do mate de galão. Pagamos com uma tampinha de
cerveja. “O tôco”, ela lembra. E pego de volta a tampinha que eu mesmo fingi
que tinha entregado. “Obrigado.” Um biscoito Globo pra cada um. Doce pra mim,
sal pra ela.
Contemplamos
o mar: Hoje tá bravo, digo. Você tem coragem? Ela diz: Tenho. E mergulha no mar
do tapete, gritando. “Olha, papai, um peixe!” E ergue uma almofada. Cuidado!,
digo.
Você
tá muito fundo. Ela então finge que se afoga, e eu corro pra salvá-la. E é uma
desculpa pra abraçá-la muito forte.
Desde
então a estante já foi um castelo, o armário um esconderijo.
Chegamos
num momento da quarentena em que todos os objetos da casa já foram
ressignificados. Já não há mais o que inventar.
O
esfregão é uma peruca, a vassoura é um cavalo, o controle remoto é um celular,
a televisão, uma grande aliada. Na hora da faxina, toma-lhe “Frozen”. Livre
estou, cantamos, livre estou — como se estivéssemos.
Já
não sei como vai ser seu reencontro com a praia de verdade.
Talvez
a areia incomode, o mar amedronte. Dois meses e meio, fiz as contas, equivalem
a três anos pra mim: um décimo da vida. É uma eternidade. Já não sei se o mundo
lá fora estará à altura do tapete.
Muitas
vezes invejamos os amigos sem filhos. Os livros que estaríamos lendo, os
filmes, as séries, os instrumentos que aprenderíamos a tocar. Mas o tapete
seria apenas um tapete. E a vassoura apenas a vassoura.
Não
sei o que seria de nós sem a companhia de alguém que nos faz ver, em cada canto
da casa, todas as possibilidades do mundo.